Silêncio: entenda por que nenhum processo de assédio sexual foi aberto pelo Governo de AL em 2016

Agendaa 5 de abril de 2017

por Rodrigo Cavalcante


“Você não foi a primeira e nem será a última”.

Foi o que ouviu anos atrás uma jovem de 25 anos, funcionária de cargo comissionado no Governo de Alagoas, após sua superiora tomar conhecimento do assédio sexual que vinha sofrendo de um Secretário de Estado. 

Isso mesmo: após todo o constrangimento diante do recorrente assédio do chefe, que culminou com a tentativa de um beijo forçado na boca após uma reunião, ela percebeu que sua superiora na pasta, também mulher e executiva respeitada à frente de um dos maiores cargos de confiança no Estado, só poderia aconselhá-la a resignar-se.

Em outro caso recente, na sede de um dos poderes legislativos no Estado, uma profissional de mais de 40 anos, com uma respeitada carreira, sentiu-se obrigada a deixar um cargo disputado quando, após uma série de insinuações sexuais verbais, seu chefe decidiu “explicitar” seu desejo expondo o seu pênis ereto no gabinete.

Quando questionei se elas não tinham como encontrar outros meios para denunciar o assédio, tudo que ouvi foi: “Para quem?” Você acha que é simples assim?”.

De fato, não é – como hoje sabe todo o país após a repercussão do assédio sexual sofrido pela figurinista da Globo Susllem Tonani pelo ator José Mayer.

Não fosse a postagem por algumas horas do depoimento da figurinista entre a madrugada da sexta (31/03) e a manhã do sábado (1/04) no blog #AgoraÉQueSãoElas, do jornal Folha de S. Paulo (que excluiu a postagem do blog na manhã seguinte), José Mayer continuaria tão livre de constrangimentos quanto os gestores acima em Alagoas.

Para se ter uma ideia de como a cultura do silêncio (e a conivência) com o assédio sexual impera em Alagoas, o Governo do Estado, maior empregador local com 38.827 servidores, não registrou em 2016 sequer um processo administrativo envolvendo denúncia de assédio sexual na Comissão Permanente de Processo Administrativo Disciplinar da Secretaria de Planejamento, Gestão e Patrimônio do Estado. Ou seja: ou nenhum servidor (incluindo 18.486 mulheres) foi vítima de assédio sexual na gestão pública ano passado, ou há algo de muito errado nos mecanismos para denunciar esses casos.

O que nem Mayer nem as organizações privadas e públicas no país e em Alagoas parecem ainda ter se dado conta é que, desde 2001, assédio sexual não é simplesmente um “erro”, como admitiu José Mayer em comunicado nesta terça.  

É crime inserido no Código Penal brasileiro com previsão de até dois anos de detenção.

Mas antes que a repercussão do caso envolvendo Mayer seja acusada de gerar uma onda de histeria coletiva de denúncias (em que um elogio pode ser interpretado como assédio), talvez seja bom esclarecer logo o que é – e o que não é – assédio sexual.

Desejo e a atração sexual, afinal, são tão naturais no ambiente de trabalho quanto em qualquer outro ambiente de convívio entre seres humanos. Tampouco a paixão de um chefe por uma funcionária, por mais constrangedora que a situação possa ser, pode ser caracterizada isoladamente como assédio. 

O que define o assédio sexual na lei brasileira (número 10224, de 15 de maio de 2001) é “constranger alguém com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.

Ou seja: é usar o poder do cargo (com ameaças ou chantagens) em busca de sexo.

Mais claro, impossível, certo?

No mundo real, nem tanto.

Afinal, entre a ameaça explícita de demissão ou a transferência para um setor indesejado, toda vítima sabe que seu superior conta com uma lista enorme de alternativas sutis para constrangê-la – tudo, claro, com o suporte dos mais sofisticados argumentos gerenciais.

Então, o que é possível fazer?

Como o assédio está previsto no código penal, a primeira alternativa seria uma denúncia criminal. O melhor caminho, indicam advogados, é reunir o maior número de provas e fazer um boletim de ocorrência em uma delegacia (no caso das mulheres, de preferência em uma Delegacia da Mulher) para que o suspeito seja investigado sigilosamente. Testemunhas, registro de mensagens via redes sociais, email, gravações telefônicas (desde que feitas por um dos interlocutores da conversa) são hoje consideradas provas válidas.

Na prática, contudo, esse caminho tem se tornado não apenas tortuoso, como ineficaz. Muitos advogados criminalistas reconhecem que o ingresso do assédio sexual no Código Penal em 2001 (no rastro do sucesso do filme Assédio Sexual com Demi Moore e Michael Douglas) teve mais efeito “publicitário” do que eficaz contra os casos. Até porque, como a pena de detenção máxima é de dois anos, ainda que o réu seja condenado, ele não seria preso – já que a lei brasileira permite que o condenado pague sua pena em regime aberto.

Por isso mesmo, uma das alternativas mais procuradas é a Justiça do Trabalho, já que os casos de assédio causam claros prejuízos profissionais à vítima. Ainda assim, de acordo com dados do Tribunal Superior do Trabalho, o número de novos processos envolvendo o tema em todo Brasil (com mais de 120 milhões de trabalhadores) não chegou a 5500 – muito pouco, por exemplo, comparado a outros temas como o assédio moral, que foi alvo ano passado de 179.651 novos processos em todas as varas trabalhistas do país.  De acordo com especialistas, contudo, os números acima também podem ser explicados pelo fato de que muitos casos de assédio sexual são incluídos em processos mais amplos de assédio moral – já que uma contrapartida natural do assédio sexual é o constrangimento moral sofrido pela vítima ao não ceder ao superior.

No setor público, como vimos nos casos que abrem a matéria, o caminho para a punição de servidores tampouco é eficaz – como revela a inexistência de processos administrativos envolvendo casos de assédio sexual no governo estadual. Como os estatutos dos servidores não contam com normas específicas sobre o tema, os casos precisam ser classificados, por exemplo, como “conduta atentatória à moralidade administrativa”. Além disso, de acordo com especialistas em Direito Administrativo, um dos passos para a denúncia seria a vítima relatar o caso ao superior direto do assediador.

Ou seja: no exemplo que abre este texto, a jovem assediada pelo Secretário de Estado precisaria levar seu caso diretamente ao governador.

Fácil, não?

Enquanto mecanismos mais eficientes (e seguros) de ouvidoria interna não são implantados, especialistas ouvidos por AGENDA A indicam que, na prática, o caminho mais eficaz para coibir a prática é expor o tema abertamente e envolver líderes e gestores de recursos humanos para tratarem do tema como um problema grave de gestão, garantindo apoio às vítimas e rompendo com a cultura de silêncio, conivência e cinismo diante do assediador, por mais poderoso que seja – como fizeram atrizes da Globo em solidariedade à figurinista Susllem Tonani diante da sua corajosa decisão de não permanecer em silêncio.

Ela não foi a primeira. E, com certeza, não será a última.

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