Crônica: Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano, relata tentativa de adquirir obra do avô em leilão

Agendaa 8 de outubro de 2016

Leia abaixo bela crônica do escritor Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano e filho do também escritor Ricardo Ramos, sobre recente participação em um leilão em São Paulo para tentar adquirir um exemplar raro da primeira edição de Vidas Secas com dedicatória do velho Graça ao sogro (bisavô de Ricardo).    

 

Leilão

Ricardo Ramos Filho

Estamos acostumados a ver leilões nos filmes. Disputas emocionantes. Constrói-se no enredo tensão. Gestos, erguer de sobrancelhas, caras e bocas, sem que entendamos direito lances são feitos. E o mocinho, no final, arrecada o objeto de desejo com a gente torcendo na poltrona, grudado no écran, como diriam nossos irmãos lusitanos.

Tudo começou com mensagem eletrônica enviada pelo amigo aqui da Escritablog, Wladyr Nader. Iriam leiloar uma primeira edição do Vidas Secasautografada. Interessei-me. No anúncio da Dutra Leilões consegui decifrar os dizeres: “Para seu Américo, um abraço. Graciliano Rio – 1938”.

Menino, eu costumava passar férias no Rio de Janeiro. Deixávamos São Paulo muitas vezes no trem noturno, leito, maior farra. Ansiávamos por tios, primos, praia, verão na capital carioca. Eu gostava de me hospedar no Flamengo, onde moravam minha tia-avó Helena e meu bisavô Américo. Os mimos lá eram enormes, tratavam-me como amigo do rei, era minha Pasárgada.  Ainda não tinha mulher na cama que eu escolhesse, elas não existiam na época, mas serviam ovos mexidos no café da manhã, com pedaços de pão mergulhados no creme amarelo. E guaraná. Sim, lá eu podia beber logo cedo uma garrafa só para mim, geladinha. Refrigerante na época era raro, e o máximo. 

Vovô Américo, sogro de Graciliano, pai de vovó Heloísa, mulher do escritor alagoano, e também de minha tia-avó Helena, era um velhinho querido. Vivia de pijama em um quarto que para mim possuía aura dourada. Talvez reflexo da fumaça de cigarros acesos em piteira, cortados pela metade com uma tesourinha para economizar. As baforadas de fumo saíam de suas narinas e dançavam na penumbra, passando pelo bigode amarelo de nicotina, a luz da manhã do Rio esgueirando-se pelas frestas da persiana. Tudo fechado para ficar mais fresco. Eu, short, camiseta e havaianas, legítimas desde 1962, me sentava em sua cadeira de balanço. Adorava. Ia e vinha cada vez mais rápido. E então ele, talvez para me acalmar, começava uma história do tempo da escravidão. Eram as minhas preferidas. Aquele nordeste de engenhos. Meu bisavô tinha o dedo médio doente, enrolado, sempre apontando para a palma da mão, morto. Havia ficado preso no moedor de cana. Ria quando eu o puxava, tentando colocá-lo no lugar e o dedo, insistente, voltava para o mesmo encolhimento sem vida de sempre. Os relatos ouvidos ali, tenho certeza, me fizeram querer ser escritor mais tarde.

E então vovô Américo se erguia, vestia o terno claro impecável e me convidava para sair. Íamos de mãos dadas para o barbeiro. Lá, orgulhoso, ele apresentava o bisneto e pedia para que cortassem o meu cabelo bem curtinho. Década de sessenta, a minha juba sempre foi um incômodo para ele. Dócil e feliz com o início de minha temporada na cidade maravilhosa, eu permitia aquela falta de consideração.

Eu tive um bisavô por bastante tempo. Vovô Américo morreu quando completei dezoito anos. “Para seu Américo, um abraço. Graciliano Rio – 1938”.

Cheguei na sala ampla muito cedo. O leilão aconteceria bem mais tarde. Poucas vezes me senti tão pouco à vontade em um lugar. Insegurança de marinheiro de primeira viagem, provavelmente. Pedi para ver o livro. Emocionado peguei a relíquia nas mãos. Desgastada, a página do autógrafo meio solta. Perguntei se podia fotografar e a atendente me pediu para esperar, iria ver se era permitido. Voltou, era. Na foto apareci segurando o livro, dedicatória visível.  Resolvi deixar o lance mínimo inicial, R$ 3.000,00, muito para o meu bolso. E fui embora, não aguentava mais. Caso conseguisse aquele volume, ele teria o destino de todos os outros livros autografados da família, o IEB – Instituto de Estudos Brasileiros. Importante deixar a obra de Graciliano Ramos disponível para quem deseje estudá-lo.

Graciliano, caso soubesse do meu movimento, comentaria divertido: “Desatino gastar tanto por um livro tão chinfrim”.

Fui embora daquele ambiente tão estranho para mim. Quadros caríssimos, estátuas, objetos. Tudo que muito dinheiro pode comprar.

No dia seguinte soube que o Vidas Secas fora arrematado por valor maior do que eu dera. Não poderiam me informar quanto, nem quem o conquistara.

Hoje é sexta-feira. Talvez haja um jantar em algum salão rico mais tarde. O senhor da biblioteca bem cuidada, estantes de madeira escura, erguerá sua taça de vinho caro. Falará de safras, eflúvios, afirmará que aquela bebida o conduz para algum lugar bucólico da França. Dirá isso empertigado, os botões dourados do blazer azul-marinho brilhando.  Chamará os convidados e mostrará, vaidoso, a primeira edição de Vidas Secas autografada.  Mais recente aquisição sua. E então um brinde coroará o momento: “Para seu Américo, um abraço. Graciliano Rio – 1938”. Eu conheci e sei quem foi vovô Américo. A minha arma é o que a memória guarda.

Out/2016

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