Alagoano que gravou especial com Elis relembra amizade com a cantora; veja vídeo histórico

Agendaa 14 de janeiro de 2017

por Rodrigo Cavalcante

Alagoano de Tanque d´Arca, Audálio Dantas tornou-se um dos mais respeitados jornalistas do país nos anos 1960 e 1970 não apenas por suas reportagens premiadas em revistas como a extinta Realidade, da Editora Abril, como também por sua firme atuação contra a censura, a tortura e o assassinato de jornalistas durante a Ditadura – entre eles, a de Vladimir Herzog, morto no tempo em que Audálio presidia o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. (Em 2013, o livro-reportagem de Audálio sobre o jornalista assassinado, “As Duas Guerras de Vlado Herzog”, venceu o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não-Ficção) 

E foi exatamente no período em que esteve à frente do sindicato que o alagoano conheceu Elis Regina, que não apenas se tornou amiga dele, como chegou a reverter a renda de um de seus shows para a campanha de Audálio a deputado Federal por São Paulo, em 1978. Apelidado carinhosamente por Elis de “Ordélio”, Audálio foi até convidado a participar de uma mesa de samba, no bairro do Bixiga, onde Elis gravou um especial para a TV Bandeirantes ao lado de Adoniran Barbosa, um daqueles registros que entraram para a história da MPB (veja vídeo abaixo em que o alagoano aparece na mesa à esquerda de Elis).

A pedido de AGENDA A, Audálio conta abaixo como foi convidado para a gravação e de sua convivência com Elis, inclusive em um Réveillon na casa dela ao lado do cartunista Henfil.

AGENDA A: Quando e como você conheceu Elis Regina?

Audálio Dantas: Tive a sorte de conhecer Elis Regina num momento em que ela revelava, sem alarde, o seu lado combatente na luta de resistência à ditadura militar. Foi em 1975, pouco depois de minha eleição para a presidência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A eleição resultara de uma intensa luta que envolveu todas as redações, num movimento denominado MFS (Movimento de Fortalecimento do Sindicato), de oposição ao grupo que dominava a entidade desde 1964, alinhado com o regime militar.  Fazia parte da nossa diretoria o jornalista Walter Silva, o conhecido Pica-pau, popular por sua atuação em programas musicais de rádio e produtor de espetáculos musicais como “O fino da Bossa”. Como Elis Regina era sua grande amiga, ela costumava visitar frequentemente o Sindicato. De repente, de amiga do Pica-pau, ela passou a amiga do Sindicato e, mais do que isso, interessada na luta que desenvolvíamos contra a censura. E também minha amiga. Divertida, me chamava de Ordélio, apelido que muito prezo.

Nesse período, então, ela se tornou uma aliada importante do sindicato?

Ela viveu parte dos dias de terror que atingiram o Sindicato, com a onda de prisões de jornalistas que culminou com o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, numa dependência do II Exército, em outubro de 1975, e o desdobramento do episódio que levou a um intenso movimento de protesto contra a ditadura. No dia seguinte ao assassinato, dado como suicídio pelos militares, tomei um avião “Bandeirante” em Presidente Prudente, SP, onde estivera na véspera para uma palestra sobre liberdade de imprensa para estudantes. Fazia-se urgente a minha presença em São Paulo, para a organização da reação ao assassinato. Conseguira, com a ajuda de jornalistas locais, um lugar “extra” no voo, que vinha lotado de outras escalas. Ao embarcar, dei de cara com a Elis, sentada num banco transversal. Ela me saudou, brincalhona, “o que você veio fazer por aqui, Ordélio?” Logo perceberia a minha preocupação e, após eu lhe contar sobre a morte de Herzog nos porões do DOI-Codi, reagiu com um sonoro “Filhos da puta”, ouvido por todo avião que chacoalhava entre nuvens baixas. Essa era a Elis.

A partir da morte de Herzog, ela passou a ter uma atuação política mais forte?

A denúncia do assassinato de Herzog transformou o Sindicato dos Jornalistas numa trincheira da resistência democrática. Elis participava dessa resistência. Em 1977, quando o Sindicato comemorou 40 anos de fundação, ela foi uma das presenças mais constantes nas apresentações musicais organizadas na sede da entidade. Aí, pode-se dizer, ocorreu o que se pode chamar de festival extra  de música popular brasileira. Com ela vieram Paulinho da Viola, Eduardo Gudim, Renato Teixeira  e muitos outros. Além de Adoniran Barbosa, com quem mantinha uma divertida amizade. Adorava o linguajar do Adoniran e cantava com grande alegria as crônicas musicais que ele fazia, como o “Tiro ao Álvaro” e “Iracema”.

E como você terminou sendo convidado para participar de uma gravação de Elis com Adoniran?

Foi em 1978, quando eu era candidato a deputado federal. Era um especial para TV Bandeirantes, ela com Adoniran no velho bairro do Bixiga. De repente, o convite: “Ordélio, quer ir a um samba no Bixiga?” Claro que aceitei o convite. O samba aconteceu num boteco típico do bairro, o Bar da Carmela, se não me engano. Foi aquele desfile delicioso das músicas do Adoniran, com quem Elis se juntava, os dois com alegria de meninos. Fiquei na mesa, ao lado dois, e por não saber cantar me limitei a admirar aquela alegria, mesmo que um tanto desajeitado a tamborilar a mesa. Quem assiste ao vídeo que há anos roda na internet deve perceber que, naquela roda, eu era uma espécie de Pilatos no Credo. O que não me impediu de tomar uns bons tragos do uísque do Adoniran, o seu Old Eight de estimação. Não sei se antes ou depois do samba no Bixiga, a Elis me fez outro convite. Era para a estreia de seu novo show, “Transversal do Tempo”. Aceitei, claro, e no fim, além da beleza de Elis cantando, uma surpresa: ela anunciou  que a renda inteira da estreia seria destinada a minha campanha a deputado. Foi  maior dinheiro que entrou na campanha, talvez a mais pobre daquela eleição de 1978.

Além da convivência profissional, como era Elis pessoalmente?

Claro que uma amizade como essa atravessaria o tempo. Conheci, então, a Elis de horas tristes e alegres. Creio que no início dos anos 1980, ela me convidou para passar o Réveillon em sua casa, na Serra da Cantareira. Subi alegre a serra, com Maria Marta, então minha mulher. E participei, então, do Réveillon mais “diferente” de minha vida. Além de Elis e seu casal de filhos pequenos, estava na casa uma pessoa muito especial, o cartunista Henfil, também meu amigo. Ali não estava aquela Elis com sua alegria de menina (acho que ela estava em processo de separação). E o Henfil queixava-se das dores terríveis da artrose. Não entendi até hoje aquele convite, mas ele me deu a certeza de que aquela amizade era maior do que eu imaginava. Naquele momento ela precisava da presença de dois amigos de verdade e nos escolheu, o Henfil e eu. Não estava ali a menina sacudida, cheia de vida, de explosiva alegria, mas uma mulher sofrida que travessava a noite de mais um ano.

Você chegou a ver o recém-lançado filme Elis?

Não, talvez por temer alguma decepção. Fica pra outra vez.

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